.

 
:: Apresentação
:: O Autor
:: Leia o Prefácio
:: Leia o 1º Capítulo
:: Ilustrações
:: Outros Textos
:: Depoimentos
:: Eventos
:: Tawé & Teatro
:: Tawé na Mídia
:: Vendas
:: Contato

 

 

Aprenderemos? Espiritualidade e Fraternidade na Amazônia – convivendo com o povo Munduruku
                                                                                                   
Walter Andrade Parreira
 

É madrugada ainda. É escuro ainda. Chove. Chove muito. Frio. Faz muito frio, um frio de cortar. Está gelado. Estamos no inverno amazônico – são seis meses de chuvas torrenciais. E frio. Eles não têm grandes coisas para proteger o seu corpo, eles partem quase nus. Mas estão agasalhados pelo Espírito, recebem o calor do Pai. É preciso mais?

Os seus filhos têm fome e é preciso partir. O rio está agitado sim, há ondas ferozes sim, e suas canoas são pequeninas. Embora eles sejam os mestres-canoeiros – os “Cortadores de cabeças”, os Munduruku, os Mõnjoroko, os “filhos-do-sol” e os “filhos-da-lua” –, há risco de naufragarem, sim. Mas eles sabem, sem dúvida, que “o maior naufrágio é não partir” – eles sabem, sobretudo, que a única morte é não viver.

E eu aprendo com eles.

Ao partirem, um gesto de reverência e de agradecimento à vida e um pedido aos espíritos que habitam os animais que serão abatidos, para que eles se permitam ser transformados em alimento, alimento para os curumins, para os meninos/índios, para toda a aldeia. Se vão colher, também, uma árvore para esculpirem uma canoa, há que fazer uma roda em torno dela, abraçá-la e, igualmente, pedir licença para que ela se transforme no seu instrumento de trabalho e de sobrevivência.

O índio não fere a mata ao buscar nela o seu alimento. A mata se entrega a ele, sob a forma de planta ou sob a forma de animal, como um jardim cria e entrega amorosamente uma flor ao seu cuidador. O jardineiro colhe a flor, o índio colhe a anta, a paca, a folha, a raiz, o peixe – o índio colhe... essa a comunhão entre eles. A mata cuida do índio como o jardim da flor, o lavrador da planta, o criador do animal, o pai do filho, o Criador da criatura.

O ritual de licença aos animais e aos vegetais expressa a relação do índio com o sagrado: o animal é sagrado, o grão e o fruto são sagrados, a floresta é sagrada. A vida é sagrada. A terra não é uma coisa, um objeto a ser usado, sugado, expropriado... ela é Terra-mãe, é Mãe-terra. Tudo é sagrado... e, a vida, uma eterna celebração.

E eles entoam, então, uma oração de gratidão àqueles seres que serão abatidos porque, graças a eles, seus filhos e mulheres sobreviverão.

E uma oração em que dizem à vida que sabem e compreendem que eles próprios, também, um dia, serão o alimento da terra e de outros seres.

E eu aprendo com eles.

E, então, abençoados, colhem: uma pupunha aqui, a mandioca ali, a matrinxã acolá, uma paca do outro lado do grande rio. Colhem até que seus cestos contenham o que precisam para hoje. E, tendo obtido, então, o que necessitam para o dia de hoje, embarcam em suas canoas e retornam para casa, regressam para sua aldeia, para seus filhos.

Eles colhem apenas o que vão comer hoje. Eles não guardam para amanhã, eles não acumulam. Eles não sabem o que é isso. Eles desconhecem a propriedade privada e não têm, sequer, meios de conservação de alimentos. E, se não guardam e não acumulam nem o alimento, como haveriam de acumular outras coisas? Eles não precisam disso. Todo dia a mata lhes oferece o que precisam. Ela provê o que necessitam. Assim, se encontram uma árvore carregada de frutos, colhem apenas aqueles que comerão hoje. Se há uma manada de pacas, de veados, de queixadas, eles “colhem” apenas um ou dois, apenas o que precisam para hoje. Mesmo sabendo que amanhã a manada não passará novamente por ali. E eles não se afligem, eles não se perguntam o que comerão amanhã, embora nunca saibam, hoje, o que comerão amanhã. Eles sabem que a cada dia basta o seu cuidado.
“A cada dia basta o seu cuidado – não vos preocupeis com a vossa vida, acerca do que haveis de comer, nem com o vosso corpo, acerca do que haveis de vestir. Olhai para as aves do céu, que não semeiam, nem ceifam, nem fazem provisões nos celeiros.” “Não vos aflijais, pois, dizendo: que comeremos? Que beberemos? Não vos preocupeis pelo dia de amanhã; o dia de amanhã terá as suas preocupações próprias. A cada dia basta o seu cuidado.” (Mt. 6.25-6.34).

Amanhã será um novo dia... e esse dia ainda não chegou. A cada dia basta o seu cuidado. A vida se chama Providência, eles sabem disso. Não há com o que se preocupar. Assim, eles não têm celeiros, eles são aquelas aves que voam livres nos céus, apenas contemplando, sendo encantadas e encantando...

E, como colhem tudo apenas para hoje, como não acumulam coisa alguma, a vida do índio é a própria expressão do cuidado com a vida. Como não “fazem provisões e como não têm celeiros”, ninguém cuida da floresta melhor do que eles, ninguém tem mais carinho pela mata e pelos animais e peixes do que eles. Ninguém sabe o quanto a terra, o rio, as árvores e todos os seres são sagrados como eles sabem. Ninguém é mais cuidadoso e mais capaz de preservar a vida do que eles..

..E eu vou aprendendo.

E, por isso, a floresta lhes é pródiga. À sua passagem, deita o galho da árvore para que possam colher o fruto, na pesca e na caça lhes encaminha o peixe e o animal para alimentar seu povo. A mata lhes agradece todos os dias, em todos os momentos. A floresta e o índio vivem uma feliz integração, uma relação de harmonia e cuidados mútuos.

E, assim, lá pelo meio da tarde, retornam do seu trabalho; nós os recebemos em suas canoas. E então, como um ritual, apõem tudo o que colheram numa mesa central da aldeia, a mesa que, não por acaso, é mesmo o centro da aldeia. Está claro o significado: o centro da sua vida é a fraternidade, a partilha e a solidariedade. Ritual que guarda dois significados, que os seus filhos começam a aprender, como eles próprios aprenderam com os seus pais, e estes, com os seus antepassados. O primeiro é um agradecimento, é uma celebração à vida porque ela lhes ofertou aquele alimento – é o ofertório, preparando a comunhão. Estamos vivendo a mística da mesa. O segundo é um ensinamento, que eles querem também passar para seus filhos: tudo, tudo o que colheram na natureza está ali, ali colocado, ali disposto sobre aquela mesa. Com isso, querem ensinar a seus filhos: tudo é de todos, ninguém possui coisa alguma. Tudo é comum... é comunhão. Eles nem devem ter pronomes possessivos no seu vocabulário – meu e seu não existem –, apenas um: nosso. Tudo o que se produz pertence a todos. Ninguém guarda coisa alguma para si. Tudo é repartido. É hora da partilha. Não importa que aquele irmão não tenha ido à caça, à pesca, à roça, ele também receberá. Tudo está lá, lá na mesa, no centro... lugar de se repartir o pão.

A partilha, a fraternidade e a solidariedade são os fundamentos da sua existência: quando a roça de uma aldeia fracassa, aquele povo pode colher na roça de outra aldeia, sem necessidade sequer de avisar ou pedir licença. O seu modo de vida pode ser expresso numa frase: “Como eu posso estar bem se o meu irmão não está?”.

E eu me lembro, então, de onde vivo, e fico a me perguntar se eu permito, a um irmão faminto, entrar em meu quintal e colher uma laranja. Será que eu sei fazer isso? E eu sofro e me comovo... eu não sou como eles, eu não sei viver como eles.

E me pergunto: estou aprendendo isso? Serei capaz de aprender isso?

E me sinto, de repente, então, perdido e confuso: onde estou mesmo? Viajei no tempo e me encontro a poucos dias da morte de Jesus, numa comunidade cristã primitiva? Estarei no meio dos primeiros cristãos?

E, aí, entendo porque um missionário escreveu algo que li quando fui me encontrar com eles, com esse povo incomum e admirável: “Eu vim para catequizar o ‘selvagem’ e ignorante, vim para evangelizar o índio, mas, ao conhecer a sua vida, percebi, compreendi: não sou eu quem vai evangelizar o índio – ele é quem vai me ensinar, eu quem vou aprender o Evangelho com ele. Pois o Evangelho está nele, na sua forma de viver, na sua atitude de respeito e de amor diante da natureza e do outro. Está presente na sua própria vida, no seu dia-a-dia. Que o Evangelho não seja dissociado da minha atitude diante da vida, mas que ele seja essa própria atitude integrada em mim, como é integrada na vida do índio.”

Os Munduruku não lêem a Bíblia, porque eles não sabem ler nossas palavras... porém, muito mais que isso, eles vivem a mensagem e os ensinamentos de Jesus todos os dias, mesmo sem nunca os terem lido.

Essa, a espiritualidade maravilhosa daqueles homens e mulheres “selvagens” ou “ignorantes”. Como a nossa civilização “cristã” tem a aprender com eles!

...Aprenderemos?


Todos os Direitos Reservados © Walter Andrade Parreira
.